terça-feira, 23 de julho de 2013

FOTOS Crianças do Mola

  Algumas imagens das crianças da comunidade do Mola. Logo logo me ponho a escrever um pouco mais sobre elas... Por enquanto, ficam ao menos os retratos da Emily, do Messias, do Matheus, do Juan e do Raílson. 

 Emily, 3 anos, ainda não vai a escola, fala pelos cotovelos.
 Emily gostou da câmera.
Comendo paçoca.
 Emily nunca recusa um lanchinho.
 Emily é mandona, mas delicada.
 Fazendo pose, vovó Durvalina ao fundo.
 Com a mãe, Marlene, de 22 anos.
 Marlene voltou da cidade após engravidas de Emily.
 O pai de Emily vive em outra comundade quilombola.
Emily e Marlene dormem juntas, na mesma rede.
 Emily com o primo, Messias, de 4 anos.
 Quem comanda a brincadeira é a Emily.
 Esperando o almoço.
 Se ele consegue, eu também consigo...
"Aonde vocês vão?"
 "Lendo" o livro infantil sobre a Comunidade do Mola.
 Juan de olho no Igarapé.
 Viu a câmera, fez joinha.
 Juan vai nadar...
...sem roupa, é claro.
 Joinha!
 Matheus, irmão de Messias, de 8 anos.
 Matheus brinca com um pato.
 Matheus não dá conversa tão fácil...
 ...mas as vezes se aproxima, sorrindo de canto.
 Uma pequena que não se apresentou...
 ...mas ficou de olho em tudo...
 ...até irmos embora.
 Messias esbanja charme...
 A mãe de Messias mora na cidade.
 Mas a Vovó Durvalina não deixou os netos irem, se sente sozinha sem eles. 
 Que que você tá fazendo com essa câmera?
 Espiando do outro lado da janela...
 Hum...
 Raílson, filho do nosso guia, Tiuí.
 Railson ainda está se alfabetizando, mas passou umas boas horas de olho no livro sobre a Comunidade.
Railson nos mostrou o batuque do "Samba de Cacete".

E o Mola, o que é que é?

  Se eu fosse escrever uma crônica sobre a Comunidade do Mola ela seria uma crônica sobre educação. Isso por dois motivos. Primeiro porque, se tirarmos a educação informal, a transmissão oral da memória, a cultura passa de pai para filho, o Mola passa a ser igual a qualquer outra comunidade rural pobre do Pará. Uma comunidade em que se vive da mandioca, em que se está cercado por rio, em que se vive em casas simples de madeira e se dorme em redes. Mas não, o Mola não é só isso. O Mola é o que restou e permaneceu de um Quilombo que remete ao século XVIII. No mola, as crianças não crescem ouvindo falar em bicho papão. Crescem ouvindo que, se saírem de casa a noite, podem dar de cara com o pega-pega. Muitas delas só vão descobrir anos depois que esse pega-pega é uma referência ao capataz que ia atrás dos "negros fugidos". Muitas dessas crianças vão descobrir somente quando crescem que vivem em uma comunidade que foi formada por negros escravizados, que resistiram e fugiram. De tão acostumados com a vida no rio, podem nem perceber que só é possível entrar no igarapé que leva ao mola em certo horário do dia - o que um dia dificultou o trabalho do pega-pega. Muitas vezes tudo isso só se torna consciente com o trabalho de pesquisadores que vem de fora para conhecer a história do Mola. Esse trabalho dos pesquisadores, inclusive, foi uma forma de educação - não somente para mostrar a história que existe, mas para mostrar que ela é motivo de orgulho. Para que, quando chegam a cidade, os jovens do Mola não se sintam intimidados com qualquer tipo de preconceito e possam bater no peito e dizer: eu vim de uma comunidade Quilombola. 
  Aliás, com isso chegamos ao segundo motivo pelo qual uma crônica do Mola seria uma crônica sobre educação. Porque as crianças, quando concluem os anos iniciais do Ensino Fundamental, precisar estudar na comunidade vizinha ou na cidade. E se desejam continuar, cursando o ensino médio, são obrigadas a fazê-lo na cidade. Na Comunidade existe apenas uma escola, classificada como isolada pelos orgãos responsáveis, que funciona em um sistema multisseriado. Crianças de 4 a 11 anos estudam juntas, em uma mesma sala, com um só professor. Um professor que, muitas vezes, concluiu apenas o magistério. Mas, ainda assim a escola é vista como peça chave e a alfabetização é quase um marco na vida da criança. Segundo a professora Celeste, que estuda as comunidades da região, a escolarização formal é vista com uma forma de alcançar o nível do escravizador, adquirir a cultura do dominador e poder estar diante dele de igual pra igual. Faz sentido. Talvez por isso a grande maioria dos que concluem o Ensino Fundamental, de fato vão cursar o Médio na cidade. E por isso a crônica do Mola fala de educação: Porque os velhos morrem, os jovens vão para a cidade em busca de educação e o Mola vai diminuindo. A Dona Durvalina, que viu a comunidade florescida, lembra de mais de 50 famílias, a região toda repleta de casas. Mas o Mola minguou, hoje restam apenas 7 famílias.

  Ou seja, a educação, no Mola, é motor do florescimento cultural e pontapé para o possível desaparecimento da comunidade. A educação é quase o começo e o fim, o A e o Z. Por isso uma crônica sobre o Mola só poderia ser uma crônica sobre educação. Isso se eu fosse escrevê-la. 


terça-feira, 16 de julho de 2013

Gringo Feelings

                Não é a primeira vez em que me sinto gringa. O sentimento de not belonging, já diria o poeta, é mesmo o sentimento da época em que vivemos. Essa sensação de estranhamento já me acompanhou em diversos lugares: nas ruas de Jerusalém, com minhas roupas curtas, nas ruas de Paris, com meu não-falar-francês ou nas ruas de Roma, com minha delicadeza em não saber lidar com os italianos. O mundo é mesmo um lugar encantador e estranho.
                Não é a primeira vez, também, em que me sinto gringa em meu próprio país. Com minha ascendência judaico-européia transparecendo por todo os lados, já fui confundida com as mais diversas nacionalidades. Em Salvador fui acompanhada por esse gringo feeling aonde quer que eu fosse. O auge, como não poderia deixar de ser, se deu nas ruelas do pelourinho. A cada passo uma oferta de pulseirinha - “é presente!” -, colar, visita guiada, passada de perna. Perdi dois reais para uma dessas histórias de ONG e fui solicitada a dar os outros dez que estavam na minha carteira. Na minha total incapacidade de dizer não aliada ao imã da minha brancura, levei as mais diversas rasteiras.
                Mas não no Pará. Não na amazônia tocantina, ao menos. Aqui, nas ruas, lidei com o extremo de ser simplesmente estranha. Lidei com um olhar de quem-é-você-e-por-que-está-aqui-afinal, uma total incompreensão; Os cidadãos cametaenses, ao contrário dos soteropolitanos, não tiram proveito dos turistas. Não sabem tirar proveito dos turistas. Praticamente desconhecem essa categoria de ser humano - já a conheceram, mas nunca tiveram que lidar com ela. Quando o contato comigo chegou a acontecer, presenciei duas alternativas: a famosa pedreiragem masculina  (universal? latina?) ou uma outra postura, difícil de definir. Diria que é herdeira de alguma longa história que faz o brasileiro, especialmente o interiorano e pobre, sentir-se inferior e mesmo servil diante do diferente. Diante do homem da cidade, do “doutor”, do estrangeiro.
                Notei pela primeira vez algo assim quando, na farmácia, solicitei uma caixa de complexo B - minha ascendência judaico-européia me faz pouco preparada para o mato e os insetos - e me foi indicada a prateleira ao lado por um rapaz simpático. Me pus a analisar os diferentes frascos quando, de repente, noto que o rapaz segue ao meu lado, me olhando com um sorriso, como que aguardando novas instruções. Lamentando não ser uma avestruz, retornei seu sorriso com o menos tímido que me surgiu no momento. “Você não é brasileira, né?”, perguntou. “Hã hã, sou sim. Sou do sul.”, respondi. “Ah, é que tenho um amigo holandês e a filha...”, continuou explicando, mas minha cabeça já estava absorta em um quebra cabeça que me perguntava “o que (the fuck) está acontecendo?”.
                Mais além, no dia seguinte, tomamos um barco para uma vila, daonde pegaríamos um mototáxi que nos levaria à comunidade Quilombola. No barco um senhor estrábico, de uniforme completo do Vasco, pele negra e cabelo branco, parou diante de nós - eu e meu irmão, professor de uma universidade local. O senhor ficou nos olhando com um sorriso no rosto. Devolvemos com mais um sorriso tímido e uma saudação de cabeça. O senhor, de alguma forma, sabia quem eramos. “Tudo bom, professor?”, perguntou. Iniciou-se uma conversa, logo o senhor se abancou, e começou a narrar as mais diversas peripécias. Quem sabe conto as aventuras desse senhor, o João Antônio, mais além. Mas a verdade é que mais  adiante na viagem muito do que ele contou foi posto em dúvida pelos amigos que fomos fazendo. Mas o que marcou mesmo a conversa foi o seu real objetivo: conseguir patrocínio para o time de futebol de que era presidente. Aí você talvez pense: bom, se é assim, estamos falando do mesmo tipo de relação com gringos que vemos nas capitais do nordeste, ele só veio falar com vocês para lhes passar a perna! De fato, é possível. Aparentemente a malandragem estava mais aprimorada nesse senhor vascaíno. Nem ao menos sabemos se o time, como a ONG soteropolitana, existia de verdade. O curioso foi a postura de respeito com que ele se pôs diante de nós. O curioso foi ele pensar que ninguém melhor para patrocinar algo do que um professor. Sim, o professor no topo da pirâmide social. O curioso foi ele, depois de já ter tirado vinte reais do seu novo patrocinador, seguir dissertando sobre a honra que seria para um time da copa rural ter o nome de um professor no seu uniforme. O curioso foi, depois de ele arranjar uma desculpa para se retirar, voltar perguntando - gritando no meu ouvido e me tirando, assustada, do transe de olhar o rio Tocantins - onde estava o professor. Aproveitou para me perguntar se era sua esposa e teria estabelecido uma nova prosa se eu não o tivesse desanimado com minha cara de sono. “Não, sou irmã dele”.
                  Descendo do barco encontramos nosso guia - esse sim merecerá uma história a parte, sem dúvida. Cumprimentamos o rapaz e meu irmão saiu atrás de uma água ou uma coca-cola. Nada. Estava tudo fechado, as 13h30, na Vila do Juaba. Eu disse que ia procurar um banheiro e saí. Nosso guia gritou para que esperasse e mandou uma moça me levar para usar o banheiro de sua casa - não havia rastro de banheiro público no local. A moça me acompanhou, os sorrisos tímidos e sem reação se multiplicavam. Caminhamos 10 passos ao longo do trapiche e chegamos a uma porta, no próprio trapiche, aonde a moça morava. Abriu a porta e vi que a casa era da estreiteza da porta. Vi, também, que seu marido dormia em uma rede atravessada na entrada. Ela olhou a cena e julgou que eu não poderia me submeter a usar o banheiro naquelas condições. Me levou ao outro lado do trapiche para que o fizesse na casa de sua vizinha. A vizinha consentiu, nervosa - “Está um pouco bagunçado, me desculpe” -, entrando no banheiro para recolher peças de roupa íntima. Eu, depois de usar o banheiro e agradecer imensamente, descubro que a primeira moça, a da casa-porta, ainda me aguarda para me ciceronear de volta à boca do trapiche. Tudo, sempre, com aquele mesmo sorriso: simpático, estático, tímido e - infelizmente- com um toque subalterno.
                Na comunidade que visitamos a história foi outra - um estudo antropológico a parte, especialmente de nós mesmo-, mas logo de volta me senti gringa de novo. O sentimento é constante, se saio de casa sozinha já visto um carranca e um óculos de cavalo, pra evitar constrangimento. Hoje mesmo, voltando do bar, atravessei no meio de um grupo que, como é de costume, ocupava a calçada inteira com seu evento social e sua cadeiras de plástico. Uma morena, ao me ver passar, torceu o pescoço até a última gota com um olhar assustado.  Vendo seus olhos me dei conta: não é a primeira vez que me olham como gringa no meu próprio país, mas é, definitivamente, a primeira vez que me olham como extraterrestre no meu próprio planeta.
               

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Dona Durvalina


                Essa é Dona Durvalina (essa, a do fundo). Ela é uma senhora um tanto peculiar. Ainda assim, ela tem um que um tanto universal. Um que de mãezona, sabe? Não de mãe, simplesmente, de mãezona. Aquela avó-matriarca que está sempre por trás do bom funcionamento da família, da casa, do jantar. Aquela que está sempre por trás de tudo, mas que não faz questão de louros: só quer ver todo mundo feliz. Aquela mãezona que não derrama sua afetividade assim de graça, mas ama profundamente todos os membros de sua família e mantém sempre o olhar atento sobre todos. E é por isso que ela é a grande peça chave dessas histórias que vivemos e conhecemos na Comunidade do Mola… por isso, também, que ela não aparece em quase nenhuma delas.
                Dona Durvalina nos recebeu em sua casa enroladinha na toalha. Recém saíra do banho quando soube que seus hospedes estavam ali. Ao mesmo tempo em que, sem cerimonias, se colocou a nos receber, não interrompeu suas atividades - o que mesmo fazia, na varanda da casa, enquanto se apresentava e derramava sua hospitalidade (ainda tímida) naqueles dois forasteiros?
                Em seguida saímos de sua companhia para conhecer um outro senhor, o Coelho. Era a segunda pessoa de uma grande sequência que conheceríamos que teria muito o que contar. Se sentia a vontade diante da câmera e derramava sua histórias. Interessantes, sem dúvida - falamos delas mais tarde, vai saber? - mas o tal do Coelho nem tinha nascido no Mola e falava da comunidade com autoridade de pajé. Dona Durvalina não, tanto é que nem conversamos com ela sobre sua história no primeiro dia e só o fizemos no segundo pela advertência do nosso "guia", o Tiuí, que avisou que ela tinha muito pra contar. Na verdade, sua postura sempre presente mas pouco visível fez com que só pensássemos em fotografá-la as sete e meia da manhã  do dia seguinte, quando saía pra roça. “Ah, mas assim, desse jeito?”, respondeu, quando pedimos autorização para sacar a foto.
                Aí só fomos encontrá-la várias horas depois. ά roça de mandioca só se chegava de barco e ela passou umas boas horas lá. Chegou, suada, mas nem sequer sentou: se pôs a preparar o almoço que serviu primeiro para as crianças e depois nos ofereceu perguntando, preocupada, se comíamos conserva. Ela sabia que havíamos trazido nossa própria comida, que não queríamos dar trabalho - no dia anterior já tinha nos dado uma bronca bem humorada quando montamos o fogareiro e fizemos um macarrão ao relento. Mas apenas com um olhar recusou nossa recusa, como quem diz: vocês são meus hóspedes, nem pensem nisso.
                Depois de encarar a roça e o fogão, chamamos Durvalina para uma entrevista. Ela aceitou sem olhar pra mim, um tanto tímida. E não se sentou, ficou encostada, assim, no batente da porta. Será que não cansa, essa mulher? Talvez por isso tem a pele um pouco envelhecida e aparenta ser uma senhora de idade, quando na verdade ainda não completou sessenta. A vida de roça, talvez, tirou-lhe alguns anos de juventude cutânea, mas suas histórias demonstram que, se Deus quiser, ainda vive muito. Os que vieram antes dela, parece, colheram bons frutos da alimentação simples e pura, da água de poço ou, talvez, mesmo do trabalho.  As histórias falam de avós e bisavós que viveram mais de cem anos. E as histórias são muitas, as que tive a rapidez de gravar e as que ficaram suscetíveis ύ memória. Ela viu o Mola em seu apogeu (“Quando me entendi, viviam aqui mais de 50 famílias”). Depois, viu os anciões morrendo, os jovens partindo para estudar na cidade. Afinal, como ela mesma diz, foi nascida, criada, criou oito filhos e um tanto de netos e até hoje vive na vila, chefiando uma das sete famílias que permanecem na pequena povoação.
                Dona Durvalina diz que não sai de lá por nada, mas também não lamenta o encolhimento da comunidade ou a saída dos jovens. Em especial de seus filhos. Afinal, se fica doente, com apenas uma ligação telefônica mobiliza boa parcela dos 7 filhos que vivem fora. Segundo ela, em menos de uma hora. Todos acodem rapidinho para dar suporte à
Durvalina. Também, pudera, com uma mãezona dessas...