Não
é a primeira vez em que me sinto gringa. O sentimento de not belonging, já
diria o poeta, é mesmo o sentimento da época em que vivemos. Essa sensação de
estranhamento já me acompanhou em diversos lugares: nas ruas de Jerusalém, com
minhas roupas curtas, nas ruas de Paris, com meu não-falar-francês ou nas ruas
de Roma, com minha delicadeza em não saber lidar com os italianos. O mundo é
mesmo um lugar encantador e estranho.
Não
é a primeira vez, também, em que me sinto gringa em meu próprio país. Com minha
ascendência judaico-européia transparecendo por todo os lados, já fui
confundida com as mais diversas nacionalidades. Em Salvador fui acompanhada por
esse gringo feeling aonde quer que eu fosse. O auge, como não poderia deixar de
ser, se deu nas ruelas do pelourinho. A cada passo uma oferta de pulseirinha - “é
presente!” -, colar, visita guiada, passada de perna. Perdi dois reais para uma
dessas histórias de ONG e fui solicitada a dar os outros dez que estavam na
minha carteira. Na minha total incapacidade de dizer não aliada ao imã da minha
brancura, levei as mais diversas rasteiras.
Mas
não no Pará. Não na amazônia tocantina, ao menos. Aqui, nas ruas, lidei com o
extremo de ser simplesmente estranha. Lidei com um olhar de quem-é-você-e-por-que-está-aqui-afinal,
uma total incompreensão; Os cidadãos cametaenses, ao contrário dos
soteropolitanos, não tiram proveito dos turistas. Não sabem tirar proveito dos
turistas. Praticamente desconhecem essa categoria de ser humano - já a
conheceram, mas nunca tiveram que lidar com ela. Quando o contato comigo chegou a
acontecer, presenciei duas alternativas: a famosa pedreiragem masculina (universal? latina?) ou uma outra postura,
difícil de definir. Diria que é herdeira de alguma longa história que faz o
brasileiro, especialmente o interiorano e pobre, sentir-se inferior e mesmo
servil diante do diferente. Diante do homem da cidade, do “doutor”, do
estrangeiro.
Notei
pela primeira vez algo assim quando, na farmácia, solicitei uma caixa de
complexo B - minha ascendência judaico-européia me faz pouco preparada para o
mato e os insetos - e me foi indicada a prateleira ao lado por um rapaz simpático.
Me pus a analisar os diferentes frascos quando, de repente, noto que o rapaz
segue ao meu lado, me olhando com um sorriso, como que aguardando novas instruções.
Lamentando não ser uma avestruz, retornei seu sorriso com o menos tímido que me
surgiu no momento. “Você não é brasileira, né?”, perguntou. “Hã hã, sou sim.
Sou do sul.”, respondi. “Ah, é que tenho um amigo holandês e a filha...”,
continuou explicando, mas minha cabeça já estava absorta em um quebra cabeça
que me perguntava “o que (the fuck) está acontecendo?”.
Mais
além, no dia seguinte, tomamos um barco para uma vila, daonde pegaríamos um
mototáxi que nos levaria à comunidade Quilombola. No barco um senhor estrábico, de
uniforme completo do Vasco, pele negra e cabelo branco, parou diante de nós -
eu e meu irmão, professor de uma universidade local. O senhor ficou nos olhando
com um sorriso no rosto. Devolvemos com mais um sorriso tímido e uma saudação
de cabeça. O senhor, de alguma forma, sabia quem eramos. “Tudo bom, professor?”,
perguntou. Iniciou-se uma conversa, logo o senhor se abancou, e começou a
narrar as mais diversas peripécias. Quem sabe conto as aventuras desse senhor,
o João Antônio, mais além. Mas a verdade é que mais adiante na viagem muito do que ele contou foi
posto em dúvida pelos amigos que fomos fazendo. Mas o que marcou mesmo a
conversa foi o seu real objetivo: conseguir patrocínio para o time de futebol
de que era presidente. Aí você talvez pense: bom, se é assim, estamos falando
do mesmo tipo de relação com gringos que vemos nas capitais do nordeste, ele só
veio falar com vocês para lhes passar a perna! De fato, é possível. Aparentemente a
malandragem estava mais aprimorada nesse senhor vascaíno. Nem ao menos sabemos
se o time, como a ONG soteropolitana, existia de verdade. O curioso foi a
postura de respeito com que ele se pôs diante de nós. O curioso foi ele pensar
que ninguém melhor para patrocinar algo do que um professor. Sim, o professor
no topo da pirâmide social. O curioso foi ele, depois de já ter tirado vinte
reais do seu novo patrocinador, seguir dissertando sobre a honra que seria para
um time da copa rural ter o nome de um professor no seu uniforme. O curioso
foi, depois de ele arranjar uma desculpa para se retirar, voltar perguntando -
gritando no meu ouvido e me tirando, assustada, do transe de olhar o rio
Tocantins - onde estava o professor. Aproveitou para me perguntar se era sua
esposa e teria estabelecido uma nova prosa se eu não o tivesse desanimado com
minha cara de sono. “Não, sou irmã dele”.
Descendo
do barco encontramos nosso guia - esse sim merecerá uma história a parte, sem dúvida.
Cumprimentamos o rapaz e meu irmão saiu atrás de uma água ou uma coca-cola.
Nada. Estava tudo fechado, as 13h30, na Vila do Juaba. Eu disse que ia procurar um
banheiro e saí. Nosso guia gritou para que esperasse e mandou uma moça me levar
para usar o banheiro de sua casa - não havia rastro de banheiro público no local. A moça me acompanhou, os sorrisos tímidos e sem reação se
multiplicavam. Caminhamos 10 passos ao longo do trapiche e chegamos a uma
porta, no próprio trapiche, aonde a moça morava. Abriu a porta e vi que a casa
era da estreiteza da porta. Vi, também, que seu marido dormia em uma rede
atravessada na entrada. Ela olhou a cena e julgou que eu não poderia me
submeter a usar o banheiro naquelas condições. Me levou ao outro lado do
trapiche para que o fizesse na casa de sua vizinha. A vizinha consentiu,
nervosa - “Está um pouco bagunçado, me desculpe” -, entrando no banheiro para
recolher peças de roupa íntima. Eu, depois de usar o banheiro e agradecer
imensamente, descubro que a primeira moça, a da casa-porta, ainda me aguarda
para me ciceronear de volta à boca do trapiche. Tudo, sempre, com aquele mesmo
sorriso: simpático, estático, tímido e - infelizmente- com um toque subalterno.
Na
comunidade que visitamos a história foi outra - um estudo antropológico a
parte, especialmente de nós mesmo-, mas logo de volta me senti gringa de novo.
O sentimento é constante, se saio de casa sozinha já visto um carranca e um óculos
de cavalo, pra evitar constrangimento. Hoje mesmo, voltando do bar, atravessei
no meio de um grupo que, como é de costume, ocupava a calçada inteira com seu
evento social e sua cadeiras de plástico. Uma morena, ao me ver passar, torceu
o pescoço até a última gota com um olhar assustado.
Vendo seus olhos me dei conta: não é a
primeira vez que me olham como gringa no meu próprio país, mas é,
definitivamente, a primeira vez que me olham como extraterrestre no meu próprio
planeta.